Este post faz parte da série ‘Raça, Nação e Migração’, do blog do MMB, a qual visa reformular o pensamento sobre movimento e racismo.
Por Angelo Martins Junior.
Versão em inglês aqui.
A liberdade de se mover de um lugar para outro é um privilégio no mundo contemporâneo e, portanto, ideias sobre mobilidade humana e diferenças estão necessariamente entrelaçadas. Quando pessoas do norte global (especialmente aquelas racializadas como brancas) se movem ao redor do mundo, normalmente são imaginadas como turistas, estudantes, intercambistas, viajantes a negócios, expatriados e assim por diante, enquanto aquelas do sul global (racializadas como não brancas) são consideradas ‘migrantes’. Assim, para este segundo grupo, a condição de migrante – o fato de terem se deslocado – passa a ser aquilo que os definem na nova sociedade onde vivem, sendo frequentemente representados como grupos homogêneos. Acadêmicos, bem como formuladores de políticas públicas, políticos e jornalistas, muitas vezes falam a respeito de ‘migrantes do sul da Ásia, da África’ ou ‘requerentes de asilo’, por exemplo, como se constituíssem um grupo indiferenciado de pessoas.
Muitos já discutiram, contudo, como essa tendência de homogeneizar ‘migrantes’ está conectada a estereótipos racista presentes em falas anti-migração (ex: ‘eles’ são todos criminosos, traficantes e estupradores). Porém, mesmo entre aqueles que têm uma visão mais positiva acerca da migração, ela pode também estar associada a estereótipos que romantizam ou exoticizam o ‘migrante’. Nos estudos sobre migração, tal visão, muitas vezes, se traduz em suposições romantizadas sobre ‘comunidades migrantes’ – as quais seriam constituídas a partir de uma experiência migratória compartilhada ou de uma pátria/cultura comum, o que resultaria em relações de solidariedade onde conterrâneos apoiariam uns aos outros na nova sociedade.
Como um brasileiro que trabalhou e depois estudou em Londres, fiquei impressionado com o fato de que a literatura acadêmica que enfatiza a comunhão e a solidariedade entre os migrantes não dialogava com a minha própria experiência. Esta observação motivou a pesquisa sobre brasileiros em Londres na qual meu livro, Moving Difference, se baseia. A pesquisa envolveu trabalho etnográfico e entrevistas com homens e mulheres que, embora todos sendo ‘migrantes brasileiros em Londres’, diferiam-se em termos das regiões do Brasil de onde vieram, suas formações socioeconômicas e educacionais e suas identidades racializadas. Tais diferenças deslocaram-se com esses brasileiros, moldando não apenas suas razões para migrar e como eles navegam por diferentes níveis de oportunidades e restrições para se moverem, mas também as maneiras pelas quais eles se veem e interagem uns com os outros, em Londres. No entanto, o Reino Unido tem suas próprias hierarquias sociais e políticas e, em Londres, os participantes da minha pesquisa se viram não apenas considerados como ‘brasileiros’, mas também agrupados entre os ‘migrantes’ do sul global em geral.
Mover-se geograficamente rompeu o privilégio racial de muitos brasileiros de classe média (de pele mais clara e branca), que nunca antes haviam sentido a possibilidade de serem percebidos como um ‘outro’ inferior, desvalorizado, como um ‘problema social’. Para eles, ser posicionado como um ‘migrante’ implicava a possibilidade de experimentar uma degradação de classe, ‘racial’ e social. Em Londres, eles tinham que negociar sua posição em duas matrizes de diferença – uma ‘aqui’, no Reino Unido, e uma ‘lá’, no Brasil. Enquanto alguns refletem criticamente sobre essas hierarquias e expressam solidariedade política com outros migrantes, muitos dos participantes da minha pesquisa procuram se distanciar de identidades estigmatizadas ‘aqui’, enfatizando sua posição superior ‘lá’. Como muitos disseram, eles não são os ‘verdadeiros migrantes’, não eram pobres, sem educação e qualificação, ‘ilegais’, promíscuos ou criminosos, como os outros brasileiros em Londres. Além disso, muitos diziam não querer viver entre a ‘comunidade brasileira’, em áreas de Londres consideradas onde os ‘migrantes’ vivem, mas sim em áreas onde há apenas ‘pessoas bonitas [em outras palavras, brancas] falando inglês na rua,’ onde ‘tudo é limpo e você não vê lixo no chão, ou um monte de gente feia e fedorenta que te faz sentir que está na África, não na Europa.’
Moving Difference documenta as maneiras pelas quais os brasileiros em Londres negociam e recriam a diferença em termos de classe, região, gênero, ‘raça’, ‘cultura’ e status documental, e examina as histórias e os imaginários sociais de ‘raça’ e degradação que nos permitem compreender a visceral repulsa racial, de classe, de gênero e regional expressa pelos brasileiros (especialmente membros da classe média branca) ao falar de seus conterrâneos e de outros migrantes e seus ‘espaços’. Embora tal repulsa seja expressa ‘aqui’, em Londres, este sentimento tem suas origens na presença colonial de europeus e africanos escravizados ‘lá’, no Brasil – um passado que historicamente moldou projetos brasileiros de ‘raça’ e nação, e que continua a influir na vida de brasileiros que vivem em Londres hoje.
Como sabemos, após a abolição, em 1888, o Brasil embarcou – influenciado por pressupostos raciais eugênicos – em um projeto de embranquecimento da população, o qual que incentivou a imigração europeia como forma de ‘civilizar’ a nova nação, ‘melhorando’ seu ‘sangue misto’. Essa nova população de migrantes europeus (e japoneses) concentrava-se predominantemente no sul e sudeste do Brasil, regiões que, desde a independência, foram adquirindo posição central na economia nacional, especialmente com a produção de café e, posteriormente, industrialização. Ao mesmo tempo, sem acesso à terra ou qualquer forma de indenização estatal, toda uma classe de negros – os ex-escravos e seus descendentes – e também de brasileiros pobres de pele mais clara (muitas vezes nordestinos) foram marginalizados tanto na configuração do espaço urbano e político, quanto no mercado de trabalho, lidando com exclusão cotidiana, discriminação, degradação e violência estatal.
Vivendo como ‘subcidadãos’ nas periferias urbanas pobres das cidades do sul, eles têm sido usados pela classe média e a elite como uma força de trabalho barata e precária para realizar atividades consideradas ‘não qualificadas’ – atividades tidas como ‘sujas’ e ‘pesadas’ para homens e trabalho doméstico e sexual para mulheres. Eles são socialmente imaginados como corpos repulsivos, culpados pela classe média e a elite pelo suposto fracasso do Brasil em não se tornar totalmente desenvolvido/ moderno/civilizado, e muitas vezes executado nas ruas pela polícia. Como forma de lidar com essa exclusão histórica, muitos brasileiros constantemente negociam o racismo por meio de hierarquias de cor/cabelo e posicionamento de classe, tentando se distanciar de qualquer traço de ‘negritude’/ pobreza que pudesse levar à sua identificação como um ‘corpo degradado’.
Hoje, as histórias colonial e racial do Brasil desempenham um papel importante tanto na geração do desejo de migrar quanto na forma como as jornadas migratórias se desenvolvem. Muitos brasileiros acreditam que a mudança para Londres lhes permitirá alcançar os ideais materiais e culturais de um estilo de vida ocidental ‘moderno’, o qual seria impossível de se alcançar no Brasil (considerado como um país não completamente moderno). Além disso, os descendentes dos europeus participantes do projeto de embranquecimento do Brasil no passado desfrutam, hoje, de maior liberdade de movimento na Europa e, portanto, encontram mais facilidades para realizar sua ambição de se mudar para Londres. Contudo, uma vez no Reino Unido, eles se encontram realinhados na constelação de ideias sobre raça, modernidade e valor humano de forma a ficarem precariamente perto daqueles que são socialmente imaginados como nojentos, degradados, incivilizados. Enquanto isso, brasileiros de pele mais escura (mas que não se identificavam como negros no Brasil), negros e membros da classe trabalhadora que conseguem se mudar para Londres, percebem que sua mobilidade física (anteriormente imaginada como um marcador direto de progresso e privilégio) também traz a ameaça de imobilização social e racial: eles passam a ser socialmente e racialmente fixados ‘aqui’ de maneira que não eram rigidamente fixados ‘lá’.
Assim, tomando a configuração do mundo social como um continuum, feito de conexões, ambivalências e paradoxos, Moving Difference oferece uma lente sobre como o presente global móvel está conectado aos legados globais do passado colonial. A vida dos brasileiros em Londres ilustra como ‘aqui’ e ‘lá’, “presente’ e ‘passado’ estão entrelaçados, criando e recriando desigualdades e diferenças racializadas – como o acesso desigual ao privilégio da mobilidade.
Angelo Martins Junior é Pesquisador Associado na Escola de Sociologia, Política e Estudos Internacionais da Universidade de Bristol. Atualmente, ele trabalha no projeto de pesquisa ‘Modern Marronage: a busca e prática da liberdade no mundo contemporâneo’, financiado pelo European Research Council.
Você pode comprar Moving Difference: Brazilians in London no site da editora Routledge.